
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, discursa no Parlamento Europeu em Estrasburgo, França, no dia 1º de abril de 2025. (União Europeia/Divulgação via Xinhua)
A confiança na aliança transatlântica vem se deteriorando, com a Europa entrando em conflito com os Estados Unidos em diversas áreas desde que o governo Trump assumiu o poder em janeiro. "A Europa não pode mais confiar nos EUA", lamentou a revista americana The Atlantic em artigo recente, concordando com a avaliação severa de um funcionário da UE que declarou sem rodeios que "a aliança transatlântica acabou".
Bruxelas, 27 abr (Xinhua) -- Em uma resposta marcante e sem precedentes, o executivo da UE emitiu recentemente uma orientação atualizada, instando autoridades de alto escalão ligadas aos Estados Unidos a tomarem precauções sérias contra a espionagem cibernética, informou o jornal britânico Financial Times.
Foi só um exemplo das crescentes lacunas nas relações transatlânticas nos últimos meses.
Nos últimos meses, as ações do governo americano sob o presidente Donald Trump, incluindo a ameaça de tomar a Groenlândia, a imposição de tarifas sobre as importações europeias e a marginalização da UE na abordagem do conflito Rússia-Ucrânia, destruíram décadas de normas diplomáticas americanas, deixando os aliados europeus abalados e em dificuldades.
No final de abril, a Comissão Europeia começou a distribuir celulares descartáveis e laptops não rastreáveis a essas autoridades, citando preocupações "com a possibilidade de os Estados Unidos invadirem os sistemas da comissão", informou o jornal britânico.
Isso marca mais uma mudança, destacando o desvio nos laços transatlânticos de uma aliança confiável para um relacionamento definido por um engajamento cauteloso.
ADVERTÊNCIAS DE SEGURANÇA PARA VIAGENS AOS EUA
Antes das reuniões de primavera do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial em Washington, de 21 a 26 de abril, o comissário de economia da UE, Valdis Dombrovskis, a comissária de serviços financeiros, Mairead McGuinness, e a comissária de parcerias internacionais, Jutta Urpilainen, receberam celulares descartáveis e laptops básicos, de acordo com o Financial Times.
Fontes disseram ao jornal que a precaução visa evitar o risco de espionagem por agências americanas.
Uma autoridade da UE disse que a comissão atualizou recentemente suas diretrizes oficiais para visitas aos Estados Unidos, recomendando que os celulares sejam desligados na fronteira e colocados em capas especiais para protegê-los de espionagem se deixados sem supervisão.
Embora a comissão tenha se abstido de confirmar detalhes sobre os dispositivos, a medida ressalta uma mudança na percepção da UE sobre os Estados Unidos, de um parceiro confiável para uma potencial ameaça à segurança.
Luuk van Middelaar, diretor do Instituto de Geopolítica de Bruxelas, disse ao Financial Times que a orientação não foi surpresa, descrevendo Washington como "um adversário" propenso a usar táticas excessivas ou ilegais para buscar seu próprio poder e interesses.

O secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Mark Rutte (direita), e o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, se encontram com imprensa em reunião de ministros das Relações Exteriores da OTAN na sede da organização em Bruxelas, Bélgica, no dia 3 de abril de 2025. (Xinhua/Zhao Dingzhe)
LONGA SOMBRA DA VIGILÂNCIA AMERICANA
Não é novidade para os Estados Unidos espionar seus aliados. Mas, no passado, a UE, há muito dependente de uma parceria estável e previsível com Washington, era muito menos reativa a esses fatos.
Em 2013, Edward Snowden expôs o programa PRISM, que a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) espionou vários líderes estrangeiros, incluindo a então chanceler alemã, Angela Merkel. O escândalo levou Merkel a comentar: "Espionar entre amigos é algo que não se faz".
No entanto, o incidente terminou com pouca resolução. Em 2015, promotores alemães arquivaram discretamente a investigação sobre o suposto grampo telefônico de Merkel, alegando evidências insuficientes e a falta de cooperação dos Estados Unidos, que pareceram inabalados pela reação negativa.
As revelações do WikiLeaks em 2015 de que a NSA havia monitorado três presidentes franceses anteriores provocaram protestos na França, mas críticos argumentaram que a indignação dos líderes franceses foi em grande parte performática, motivada por preocupações com o comprometimento da cooperação estratégica com os Estados Unidos.
Do PRISM ao Equation Group e ECHELON, à vigilância 24 horas todos os dias da semana, de celulares e computadores em todo o mundo, a enorme escala da espionagem americana ressalta uma realidade sobre a qual Edward Snowden já alertou. Citado pelo The Critic, ele disse que a aliança Five Eyes "infligiu ao mundo um sistema de vigilância secreto e onipresente, do qual não há refúgio".

O presidente dos EUA, Donald Trump (direito), cumprimenta presidente francês, Emmanuel Macron, em coletiva de imprensa conjunta na Casa Branca, em Washington, D.C., Estados Unidos, no dia 24 de fevereiro de 2025. (Xinhua/Hu Yousong)
DESGASTE DA CONFIANÇA TRANSATLÂNTICA
A postura de segurança reforçada da UE ocorreu em meio a tensões crescentes com os Estados Unidos, que entraram em conflito com o bloco em várias frentes, incluindo defesa, comércio e o conflito Rússia-Ucrânia, desde que Trump assumiu o cargo em janeiro.
Trump reacendeu atritos de longa data ao ameaçar se retirar das obrigações coletivas de defesa da OTAN, a menos que os estados-membros da UE aumentassem seus gastos militares para 5% do PIB. O secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, foi além, classificando o continente como "patético" e o acusando de "se aproveitar" dos compromissos de defesa dos EUA.
Sobre o conflito Rússia-Ucrânia, Trump favoreceu negociações diretas com Moscou, marginalizando o papel da UE nas negociações diplomáticas. Enquanto isso, sua agressiva agenda tarifária provocou indignação generalizada em toda a Europa. Trump rejeitou as propostas da UE para a eliminação mútua de tarifas e rotulou o bloco como "uma das autoridades tributárias e tarifárias mais hostis e abusivas do mundo".
Em resposta, a UE está moldando gradualmente uma estrutura comercial que opera fora da sombra dos Estados Unidos. Nos últimos meses, o bloco avançou ou finalizou acordos comerciais com o Mercosul, o bloco comercial sul-americano, os Emirados Árabes Unidos e o Canadá, em passos claros para diversificar suas parcerias econômicas.
Além disso, a decisão da Europa de não mais considerar a vigilância americana de longa data como garantida é um forte indício da erosão da confiança entre Washington e Bruxelas.
"A Europa não pode mais confiar nos EUA", lamentou a revista americana The Atlantic em artigo recente, concordando com a avaliação severa de um funcionário da UE que declarou sem rodeios que "a aliança transatlântica acabou".



