Um pôster marcando o 110º aniversário do Canal do Panamá é visto perto da Cidade do Panamá, Panamá, em 28 de agosto de 2024. (Xinhua/Li Muzi)
"Quero expressar com precisão que cada metro quadrado do Canal do Panamá e sua área adjacente pertencem ao Panamá e continuarão pertencendo ao Panamá", disse o presidente do Panamá, José Raúl Mulino.
Cidade do Panamá, 23 dez (Xinhua) -- O presidente do Panamá, José Raúl Mulino, rejeitou no domingo as recentes ameaças feitas pelo presidente eleito dos EUA, Donald Trump, de retomar o controle do Canal do Panamá, reafirmando que "a soberania e a independência" do Panamá não são "negociáveis".
"Quero expressar com precisão que cada metro quadrado do Canal do Panamá e sua área adjacente pertencem ao Panamá e continuarão pertencendo ao Panamá", publicou Mulino na rede social X.
"Todo panamenho, aqui ou em qualquer lugar do mundo, carrega isso em seu coração e faz parte de nossa história de luta e conquista irreversível", acrescentou.
O Canal do Panamá, uma via fluvial artificial no Panamá que liga o Atlântico ao Pacífico, foi concluído pelos Estados Unidos em 1914 e devolvido ao Panamá em 1999, de acordo com um tratado assinado pelo então presidente dos EUA Jimmy Carter e pelo líder panamenho Omar Torrijos. O acordo abre mão do controle americano sobre o canal até o ano 2000 e garante sua neutralidade.
Foto tirada com drone mostra um navio de carga navegando no Canal do Panamá perto da Cidade do Panamá, Panamá, em 28 de agosto de 2024. (Xinhua/Li Muzi)
UMA NAÇÃO "FEITA"
Em 2019, estreou o documentário estadunidense "Canal do Panamá". Embora o filme mostre a importância global do canal, ele pula um capítulo importante: A intervenção dos EUA na secessão do Panamá da Colômbia, que garantiu o controle americano do canal por quase um século.
"Para construir o canal, os Estados Unidos ajudaram o Panamá a se tornar independente da Colômbia, desmembrando assim uma república irmã para garantir um tratado de canal que assegurasse os interesses dos EUA", escreveu a historiadora panamenha Marixa Lasso em seu livro "Apagado: A história não contada do Canal do Panamá".
Em 1821, o Panamá declarou independência da Espanha e se tornou parte da República da Grã-Colômbia. Em meados do século XIX, sua localização estratégica atraiu o interesse dos EUA, principalmente porque o país buscava um canal transoceânico. Em 1903, o Tratado Herrán-Hay foi assinado, concedendo aos EUA o direito de construir um canal. No entanto, ele foi rejeitado pela legislatura da Colômbia por questões de soberania.
O então presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, deu a entender que apoiava a independência do Panamá em uma carta a seu amigo Alber Shaw: "Em particular, digo-lhe livremente que ficaria muito feliz se o Panamá fosse um estado independente, ou se o fosse neste momento".
Em 3 de novembro de 1903, navios de guerra dos EUA apoiaram uma revolta que levou à secessão do Panamá. Em poucos dias, os EUA reconheceram a nova nação e rapidamente garantiram o Tratado Hay-Bunau-Varilla, concedendo-lhe "o uso, a ocupação e o controle" da zona do canal perpetuamente por um pagamento modesto.
"Fiz o Panamá", disse Roosevelt.
A construção do Canal do Panamá começou sob o controle dos EUA em 1904 e foi concluída em 1914.
A Zona do Canal do Panamá, uma faixa de 16,09 quilômetros de largura e 1.432 quilômetros quadrados, operava como um "estado dentro de um estado" sob a jurisdição dos EUA. Ela tinha seu próprio governador, administração e comando militar, com a bandeira americana hasteada sobre a zona.
Entre 1913 e 1916, os EUA realocaram à força os moradores indígenas, desmantelando cidades panamenhas e deslocando cerca de 40 mil pessoas sem a devida indenização.
Uma carta preservada nos Arquivos Nacionais dos EUA, assinada por várias vítimas e enviada em 30 de setembro de 1914, afirmava que os habitantes da zona eram tratados de forma ainda pior do que "criminosos ferozes". Foi-lhes negado "um lugar para morar e comer, nossas terras e casas foram tomadas de nós sem nos pagar o que valem".
Na década de 1920, os Estados Unidos tentaram estabelecer o fracassado Tratado Kellogg-Alfaro, que foi rejeitado porque pretendia legalizar a presença de tropas americanas em solo panamenho.
"Esse tratado transformou completamente o Panamá em uma base militar dos EUA, ou seja, um trampolim militar para o resto da América Latina", disse Julio Yao, ex-assessor de política externa e presidente honorário do Centro de Estudos Estratégicos Asiáticos do Panamá.
Foto tirada com drone mostra embarcações navegando no Canal do Panamá perto da Cidade do Panamá, Panamá, em 28 de agosto de 2024. (Xinhua/Li Muzi)
"O MUNDO VETOU OS EUA".
A luta de décadas do Panamá para recuperar a soberania sobre o Canal do Panamá chegou a um ponto de ebulição na década de 1960. Os protestos crescentes e a diplomacia internacional acabaram por remodelar o relacionamento do país com os Estados Unidos.
Inspirados pela nacionalização do Canal de Suez pelo Egito em 1956, os panamenhos intensificaram os pedidos de revisão do Tratado do Canal do Panamá.
Em 9 de janeiro de 1964, os "Protestos da Bandeira" se transformaram em confrontos violentos depois que residentes dos EUA na Zona do Canal do Panamá rasgaram uma bandeira panamenha, lembrou Federico Alvarado, hoje com 78 anos, que estava entre os manifestantes. Durante quatro dias, as forças dos EUA abriram fogo contra os manifestantes, deixando mais de 20 mortos e centenas de feridos graves.
A violência levou o Panamá a recorrer a órgãos internacionais. Em 1973, o Conselho de Segurança das Nações Unidas realizou uma rara sessão na Cidade do Panamá, com o falecido líder panamenho General Omar Torrijos fazendo um discurso contundente condenando o colonialismo dos EUA.
"Nunca fomos, não somos, nem nunca seremos um estado associado, colônia ou protetorado, nem adicionaremos outra estrela à bandeira dos Estados Unidos", declarou Torrijos.
Um projeto de resolução que apoiava a soberania panamenha recebeu o apoio de 13 dos 15 membros do Conselho de Segurança, com a abstenção do Reino Unido. Entretanto, os Estados Unidos exerceram seu poder de veto, bloqueando a resolução apesar de seu amplo apoio.
"Os Estados Unidos vetaram a resolução do Panamá, mas o mundo vetou os Estados Unidos", disse o então ministro das Relações Exteriores do Panamá, Juan Antonio Tack.
O veto estimulou a simpatia internacional pela causa do Panamá. O mundo finalmente entendeu a luta do Panamá, disse Yao.
Em setembro de 1977, os Tratados Torrijos-Carter foram assinados por Torrijos e pelo então presidente dos EUA Jimmy Carter, estabelecendo que o Canal do Panamá seria entregue ao controle panamenho em 31 de dezembro de 1999.
Um navio de carga navega pelas eclusas de Miraflores no Canal do Panamá, perto da Cidade do Panamá, Panamá, em 28 de agosto de 2024. (Xinhua/Li Muzi)
INDEPENDÊNCIA AINDA É DIFÍCIL DE SER ALCANÇADA
"Os americanos sempre enganaram o Panamá com uma data posterior e nunca deixaram o Panamá", disse Yao.
Mesmo após a assinatura dos Tratados Torrijos-Carter de 1977, os Estados Unidos continuaram a afirmar seu domínio estratégico sobre o Canal do Panamá.
A invasão do Panamá pelos EUA, apelidada de "Operação Causa Justa" por Washington, começou em 20 de dezembro de 1989 e continuou até janeiro de 1990, com o objetivo declarado de capturar o homem forte panamenho Manuel Noriega, acusado de tráfico de drogas e crime organizado.
Trinidad Ayola, hoje com 68 anos, cujo marido foi morto pelas forças de invasão dos EUA, disse que a dor e as injustiças da incursão militar de 1989 sempre a assombrarão.
Antes de Ayola voltar para casa e saber da perda de muitas vidas panamenhas, ela estava procurando seu marido no aeroporto, onde encontrou soldados americanos que "carregavam suas armas".
"Sempre parecerá que foi ontem. Terei que conviver com essa dor por toda a minha vida", disse Ayola, presidente da Associação de Parentes e Amigos dos Mortos em 20 de Dezembro.
Mais de 26.000 soldados americanos participaram da operação, que resultou na prisão de Noriega e na dissolução das Forças Armadas do Panamá. A invasão teve um impacto significativo na história do país centro-americano, causando um número indeterminado de vítimas e consequências políticas.
"De acordo com os Estados Unidos, o objetivo era remover Noriega... mas, na realidade, o que eles queriam era destruir as forças de defesa", disse Sebastian Vergara, que presidiu a associação de 1996 a 2001, cujo pai, um civil, foi uma das muitas vítimas inocentes da invasão.
Rolando Murgas, presidente da Comissão 20 de Dezembro, um grupo que investiga a verdade por trás da invasão, acredita que "a invasão (...) visava esmagar todas as nossas reivindicações passadas e a dignidade nacional".
A comissão documentou mais de 400 vítimas, desde um bebê de um mês até um idoso de 84 anos.
Em 2022, o governo do Panamá declarou o dia 20 de dezembro como Dia Nacional de Luto.
Vergara também busca educar as gerações futuras sobre a invasão. "Se isso for ensinado como matéria nas escolas, os jovens terão consciência de que essas situações não devem se repetir", disse ele.
"O esquecimento é proibido", disse Ayola.
Visitantes observam um navio de carga navegando no Canal do Panamá perto da Cidade do Panamá, Panamá, em 28 de agosto de 2024. (Xinhua/Li Muzi)
PANAMÁ PARA PANAMENHOS
Era um dia chuvoso. Em 30 de dezembro de 1999, a bandeira dos Estados Unidos foi arriada pela última vez e substituída pela bandeira do Panamá. A transferência, oficializada em 31 de dezembro de acordo com os Tratados Torrijos-Carter, marcou o início de uma nova era para o Panamá.
"E então, após a transição, apenas a bandeira do Panamá, e uma bandeira enorme, foi hasteada", disse Jorge Luis Quijano, ex-administrador do Canal do Panamá de 2012 a 2019.
"Para o mundo, foi apenas mais um dia, mas para os panamenhos, foi monumental", disse ele.
Com o controle total do canal, o Panamá introduziu delegacias de polícia, tribunais e leis civis na zona do canal, com os panamenhos substituindo o pessoal dos EUA no gerenciamento das operações.
Sob a administração do Panamá, foram feitos esforços significativos para expandir o canal para acomodar as necessidades modernas de transporte marítimo, especialmente porque as eclusas mais antigas tinham dificuldades para lidar com navios maiores. A expansão do canal, concluída em 2016, foi fundamental para posicionar o Panamá como um participante importante no comércio global.
Atualmente, o canal movimenta cerca de 5% do comércio marítimo global, consolidando o papel do Panamá como um centro de logística, comércio e finanças.
A Zona de Livre Comércio de Colón, no Panamá, é uma das maiores do Hemisfério Ocidental. O Aeroporto Internacional de Tocumen do país é um centro de trânsito vital que conecta as Américas. A Cidade do Panamá também se tornou um centro financeiro para a América Latina, abrigando grandes bancos das Américas, Europa e Ásia.
A importância do canal transcende o comércio. No Museu do Canal do Panamá, uma bandeira restaurada, rasgada durante os "Protestos da Bandeira" de 1964, lembra os visitantes dos sacrifícios feitos pela soberania. A inscrição, "Quem semeia bandeiras, colhe soberania", ressalta sua exibição.
"Pertencemos àqueles patriotas que não querem ser esquecidos", disse Joaquín Vasquez, representante da Associação Sentinela do Canal.
Para Yao, a jornada da nação reflete as lutas mais amplas no Sul Global. Yao traça paralelos com regiões como a África e o Oriente Médio, observando que as histórias compartilhadas de dominação e resiliência moldam seus caminhos para o futuro.
"Isso é um grande despertar para uma região que tem sido muito empobrecida, muito dominada, muito interferida e muito manipulada. Acho que há um motivo para nos sentirmos otimistas", disse Yao.
"Acredito firmemente no Sul Global", acrescentou Yao. "É o caminho certo."