* As evidências sugerem que o projeto do Corredor do Lobito, embora apresentado como uma iniciativa econômica, pode ser principalmente um "cheque sem fundo" dos EUA para os países africanos.
* Muitas nações africanas se referem à cooperação com o Ocidente como "ajuda tóxica", pois ela geralmente vem acompanhada de condições políticas que podem prejudicar suas economias ou até mesmo levar à mudança de regime em casos extremos.
* Para muitos no continente, a necessidade urgente é de parcerias que priorizem o desenvolvimento africano, e não agendas moldadas por potências externas. Como observou a CNBC, uma agência de notícias americana, em uma reportagem sobre a política dos EUA na África, "‘América Primeiro’ pode colocar África em último lugar".
Luanda, 5 dez (Xinhua) -- O presidente cessante dos Estados Unidos, Joe Biden, visitou a Angola, rica em petróleo, de segunda a quarta-feira, cumprindo uma promessa de dois anos de visitar a África, bem no momento em que seu mandato se aproxima do fim.
A viagem marca a primeira vez que um presidente em exercício dos EUA viaja para a África subsaariana desde 2015, quando o então presidente dos EUA, Barack Obama, visitou o Quênia e a Etiópia. É também a primeira vez que um chefe de Estado americano visita Angola.
Durante a visita, Biden prometeu mais US$ 600 milhões para o Corredor do Lobito, um projeto de infraestrutura liderado por empresas ocidentais e apoiado pela Casa Branca.
O Corredor do Lobito se refere a uma rede ferroviária que se estende por mais de 2.000 km e conecta Angola, a República Democrática do Congo (RDC) e a Zâmbia. Ele inclui a Ferrovia de Benguela, com 1.344 km, e uma nova ferrovia planejada como um ramal da rede existente de Angola para o norte da Zâmbia.
O corredor tem como objetivo ligar o Cinturão de Cobre da África, rico em recursos, ao Oceano Atlântico, refletindo os esforços dos EUA para buscar o domínio de minerais essenciais, como cobre, lítio e cobalto, componentes essenciais da tecnologia verde, em que Washington fica atrás dos concorrentes globais.
No entanto, os analistas alertam que o futuro do projeto permanece incerto, principalmente com uma mudança de liderança no horizonte dos Estados Unidos. Além disso, considerando que as promessas anteriores dos EUA às nações africanas geralmente não foram cumpridas, muitos temem que a iniciativa possa se tornar mais um compromisso vazio.
O presidente cessante dos EUA, Joe Biden, faz um discurso no Museu Nacional da Escravidão de Angola durante sua visita de Estado a Angola em Luanda, Angola, em 3 de dezembro de 2024. (Foto por Júlio Kikebu/Xinhua)
CHEQUE SEM FUNDO
Em setembro de 2021, o governo angolano lançou um concurso público para a concessão da ferrovia do Corredor do Lobito, incluindo a operação, manutenção e restauração da ferrovia e do porto de minério. Em julho de 2022, Angola anunciou que um consórcio ocidental havia garantido a licitação, o que levou à criação da empresa Lobito Atlantic Railway (LAR) para supervisionar o projeto.
Os Estados Unidos e seus aliados europeus prometeram financiamento para o projeto, que marca o maior investimento ferroviário de Washington na África em décadas, de acordo com o Stimson Center, um think tank com sede em Washington.
Uma fonte familiarizada com o processo de licitação revelou que o consórcio ocidental ganhou a concessão prometendo construir uma ferrovia nova. "Economicamente, a promessa deles parece inviável", disse a fonte sob anonimato.
Um relatório de março da Africa Intelligence, uma publicação com sede em Paris que se concentra em assuntos africanos, levantou preocupações sobre o compromisso dos EUA. Ele observou que a Corporação Internacional de Financiamento do Desenvolvimento (DFC, em inglês) dos EUA, uma agência estatal que financia o projeto do Corredor do Lobito, duvidava da viabilidade da ferrovia nova.
"A DFC tem estudado o interesse comercial do segmento Angola-Zâmbia desde julho passado, mas não está convencida de sua relevância. Isso exigiria a construção de uma linha ferroviária totalmente nova em ambos os países, o que seria muito mais caro do que reabilitar as linhas angolanas e congolesas existentes", disse o relatório.
O trecho da fronteira entre Angola e a RDC até as regiões de mineração da RDC, que é o principal objetivo da rede ferroviária para a transferência de minerais, continua desativado e precisa de uma ampla reforma. As empresas de mineração na RDC apontaram que a LAR ainda não tem planos para reformar ou construir essa parte crítica. Consequentemente, o Corredor do Lobito corre o risco de se tornar uma "linha sem saída" que não consegue proporcionar os benefícios econômicos previstos.
As evidências sugerem que o projeto do Corredor do Lobito, embora apresentado como uma iniciativa econômica, pode ser principalmente um "cheque sem fundo" dos EUA para os países africanos.
"Angola é, portanto, apenas uma plataforma para Biden projetar a visibilidade econômica global dos EUA, em vez de um desejo de impulsionar o desenvolvimento inclusivo na África de uma maneira que possa salvaguardar a segurança e a proteção das pessoas comuns na África", disse Cavince Adhere, um acadêmico queniano de relações internacionais.
O presidente cessante dos EUA, Joe Biden, é fotografado durante sua visita de Estado a Angola em Luanda, Angola, em 3 de dezembro de 2024. (Foto por Júlio Kikebu/Xinhua)
Isso também explica por que a LAR atrasou o pagamento das taxas de concessão muito depois de vencer a licitação, gerando preocupações no governo angolano. Temendo que a LAR abandonasse o projeto, as autoridades angolanas supostamente abordaram outros licitantes, oferecendo-lhes a oportunidade de assumir o projeto se pudessem pagar as taxas exigidas.
Um representante de uma das empresas que inicialmente concorreram ao projeto disse à Xinhua: "O projeto originalmente tinha potencial de lucro, permitindo que países e empresas regionais se beneficiassem juntos. No entanto, após a intervenção de governos de países ocidentais como os Estados Unidos, o projeto foi desnecessariamente politizado. Quando as autoridades angolanas perguntaram em particular se poderíamos assumir o projeto caso o consórcio ocidental se retirasse, recusamos devido aos riscos políticos envolvidos."
Mais de dois anos se passaram desde que o consórcio ocidental venceu a licitação, mas não houve nenhum progresso em sua construção. Em vez disso, a equipe de gerenciamento do consórcio passou por mudanças frequentes.
"O envolvimento dos Estados Unidos e de seus aliados europeus no projeto do Corredor do Lobito indica a crescente disposição de Washington de usar a competição entre grandes potências como uma estrutura organizadora da política externa. Isso, por sua vez, levanta muitas questões sobre a eficácia e a viabilidade da 'parceria igualitária' que o governo Biden articulou como parte de sua tão propalada 'redefinição' das relações com os países africanos", disse um relatório publicado pelo Stimson Center, intitulado ‘As Promessas Vazias do Projeto de Infraestrutura Lobito EUA-UE’.
AJUDA TÓXICA
O Corredor do Lobito não é a primeira "promessa vazia" que Washington fez na África, e não será a última.
No início deste ano, Biden se comprometeu a continuar apoiando o Quênia na construção de uma rodovia de 440 km ligando a capital Nairóbi à cidade portuária de Mombaça, com um investimento previsto de US$ 3,6 bilhões. No entanto, um projeto semelhante que foi acordado entre o Quênia e os Estados Unidos em 2017 e que deveria ser concluído em 2024 nunca teve início.
Nos últimos anos, a RDC e a Zâmbia assinaram memorandos de entendimento (MoUs) separados com os Estados Unidos e a UE, com o objetivo de estabelecer zonas econômicas especiais para processar minerais brutos em componentes de bateria e outros produtos preliminares.
Mas o progresso continua difícil. Como observou a revista Harvard International Review em um artigo, "se essas boas intenções nunca passarem do estágio de MoU, elas valerão tanto quanto papel higiênico".
No entanto, "promessas vazias" não são o pior cenário para essas iniciativas de cooperação ou ajuda na África. Muitas nações africanas se referem à cooperação com o Ocidente como "ajuda tóxica", pois muitas vezes ela vem acompanhada de condições políticas que podem prejudicar suas economias ou até mesmo levar à mudança de regime em casos extremos.
Pessoas participam de um comício em Adis Abeba, Etiópia, em 5 de dezembro de 2021. (Xinhua/Wang Ping)
Os Estados Unidos, além de exercerem pressão sobre os países africanos por meio de instituições multilaterais, também buscam dominar o comércio africano por meio de acordos bilaterais, incluindo a Lei de Crescimento e Oportunidades para a África (AGOA, em inglês). Embora a AGOA permita que os produtos africanos entrem no mercado dos EUA, ela se transformou em uma "arma" diplomática para interferir nos assuntos internos dos países africanos.
Em 2023, o governo Biden excluiu o Níger, o Gabão, Uganda e a República Centro-Africana da AGOA por supostas "violações graves" dos direitos humanos ou por não terem estabelecido "o pluralismo político e o Estado de Direito".
Susan Muhwezi, conselheira presidencial sênior de Uganda para AGOA e comércio, alertou que essa decisão prejudicaria gravemente os exportadores ugandenses, o que equivaleria a uma "violação dos direitos humanos". O presidente de Uganda, Yoweri Museveni, criticou Washington por manipular e dar lições a países com valores diferentes, dizendo: "Parem de manipular e dar lições às sociedades que são diferentes da sua".
O Instituto de Estudos de Segurança da África, o principal think tank da África sobre política de segurança, disse que, para muitas nações africanas, "o maior problema da AGOA é que elas sentem que os EUA a manejam como a ‘espada de Dâmocles’, minando sua autonomia política no cenário global e impondo a ideologia dos EUA à sua soberania".
A ÁFRICA FICOU POR ÚLTIMO
Seja no projeto do Corredor do Lobito ou na AGOA, a sombra das sanções econômicas paira por trás da política externa dos EUA na África. Apesar da promessa de Washington de estabelecer parcerias iguais com os países africanos, suas práticas hegemônicas, marcadas por interferência e sanções, persistem.
A África continua sendo uma das regiões mais afetadas pelas sanções impostas pelos Estados Unidos e por outras nações ocidentais. Entre elas, o Zimbábue foi o que mais sofreu, suportando sanções prolongadas e severas.
Em 2001, os Estados Unidos decretaram suas sanções contra o Zimbábue, que, ao longo de duas décadas, prejudicaram significativamente a economia, o crescimento industrial e o bem-estar público do país. As sanções foram amplamente consideradas como um fator primordial na estagnação econômica prolongada do país e no declínio das condições de vida.
Em 2023, o vice-presidente do Zimbábue, Constantino Chiwenga, estimou que essas sanções custaram ao país US$ 150 bilhões em perdas econômicas, destacando o grave impacto das sanções dos EUA sobre a pobreza e a instabilidade do Zimbábue.
Rutendo Matinyarare, presidente do Movimento Anti-Sanções do Zimbábue, chamou essas sanções de "uma ferramenta do neocolonialismo", enfatizando que elas vêm da "mesma caixa de ferramentas de coerção usada para escravizar e colonizar os africanos".
Manifestantes participam de protesto perto da Embaixada dos EUA em Harare, Zimbábue, em 25 de outubro de 2021. (Xinhua/Tafara Mugwara)
O Zimbábue não é um caso isolado. Os Estados Unidos impuseram sanções a vários outros países africanos, incluindo a República Centro-Africana, a RDC, a Etiópia, a Líbia, o Mali, a Somália, o Sudão e o Sudão do Sul, causando danos significativos ao seu desenvolvimento social, econômico e de direitos humanos.
"A chave é a percepção de que os Estados Unidos perpetuam relações hegemônicas com a África, com tendências neocoloniais em que os Estados Unidos são todo-poderosos. A África deseja desenvolvimento, como investimentos, comércio, desenvolvimento de infraestrutura e transferência de tecnologia, mas isso não vem dos EUA", disse Adhere.
Na segunda Cúpula de Líderes EUA-África em dezembro de 2022, Biden disse: "Estou ansioso para ouvir mais de todos vocês sobre as questões e prioridades que mais importam para a África e como podemos aprofundar nossa cooperação. E enfatizo a 'cooperação'".
No entanto, muitos críticos argumentam que a chamada "cooperação" dos Estados Unidos não está enraizada em benefícios mútuos ou em resultados vantajosos para todos, mas serve como um veículo para promover seus próprios interesses políticos e econômicos globais.
"Os Estados Unidos operam com motivações políticas em vez de parcerias econômicas genuínas", disse Francisco Viana, presidente da Associação Empresarial de Luanda. "Queremos uma abordagem diferente, semelhante à proposta da China."
Para muitos no continente, a necessidade urgente é de parcerias que priorizem o desenvolvimento africano, e não agendas moldadas por potências externas. Como observou a CNBC, uma agência de notícias americana, em uma reportagem sobre a política dos EUA na África, "‘América Primeiro’ pode colocar a África em último lugar".
(Repórteres de vídeo: Zeng Tao, Dai He, James; editores de vídeo: Li Ziwei, Zheng Qingbin)