Em 1848, Phineas Gage, um operário ferroviário americano de 25 anos, teve o crânio atravessado por uma barra de ferro, o que provocou danos ao lobo frontal. Depois disso, Gage apresentou mudanças em sua personalidade, atribuídas na época a possíveis lesões na região frontal esquerda. Em 15 de agosto de 2012, o brasileiro Eduardo Leite, de 24 anos, sofreu um acidente semelhante em uma construção: um vergalhão caiu do 5º andar, perfurando o lado direito de seu crânio e o seu lobo frontal.
EDUARDO LEITE -- OPERÁRIO
Eu lembro de ter amarrado o ferro e dado o sinal para o rapaz puxar o ferro lá de cima. O ferro escapuliu e caiu na minha cabeça.
Com uma separação de 164 anos, o estudo das lesões de Eduardo envolvendo pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Albert Einstein College of Medicine (EUA) e da New York University (EUA) ajuda a desvendar o processo de compensação cerebral após traumatismo do lobo frontal, joga luz sobre o caso de Gage e abre caminho para tratamento médico. O que difere os dois casos, além dos lados opostos de penetração dos vergalhões, é que Eduardo não apresentou sequelas e não houve mudança de personalidade mesmo com perda de parte do córtex pré-frontal direito do cérebro, região de suma importância para os relacionamentos.
RENATO ROZENTAL -- NEUROFISIOLOGISTA DA FIOCRUZ E PROFESSOR DA UFRJ
É responsável por uma interação social extremamente importante, como você se integra na sociedade, é responsável por uma interação familiar, a relação no caso do Eduardo, com a esposa, com os filhos, com a mãe e demais parentes, e também é responsável pela tomada de decisões.
Como médico do Hospital Miguel Couto, onde o paciente deu entrada, o Dr. Renato, que acompanhou pessoalmente o caso de Eduardo, é também responsável pelo laboratório de Neurofisiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A comparação deste caso com outras desordens de acometimentos como acidente vascular cerebral, ou em caso de neoplasias ou tumores, pode fornecer experiências valiosas para tratamentos dessas patologias.
JOANA VICENTINI -- MÉDICA NEUROFISIOLOGISTA
O paciente Eduardo pode nos fornecer uma bagagem e novas ferramentas para que a gente consiga entender como o encéfalo, como o cérebro se adapta e compensa lesões de forma a tornar aquele indivíduo novamente funcional.
Mas o que poderia ter provocado comportamentos tão distintos em casos tão parecidos?
RENATO ROZENTAL -- NEUROFISIOLOGISTA DA FIOCRUZ E PROFESSOR DA UFRJ
Esse caso foi estudado à luz da medicina moderna. Então nós tivemos um arsenal terapêutico incluindo antibióticos, fármacos anticonvulsivantes e tivemos todo um arsenal de imagens como ressonância magnética, e toda uma capacidade de avaliar disfunções do paciente, como eletroencefalograma, teste neuropsicológicos que não estavam disponíveis 200 anos atrás.
A evolução tecnológica da medicina permite que as formas de tratamento acompanhem esse desenvolvimento, mas a rapidez no atendimento e a precisão da equipe de cirurgiões será sempre fundamental em uma ação invasiva de alto risco para o paciente. O neurocirurgião Dr. Ivan Santana, com sua vasta experiência de 46 anos de formado, 30 dos quais no setor de emergência do Hospital Miguel Couto, referência neste tipo de atendimento, explica seu procedimento ao receber o paciente durante seu plantão.
IVAN SANTANA -- NEUROCIRURGIÃO DO HOSPITAL MIGUEL COUTO
Faz-se uma craniotomia. Tiramos um quadrado de osso em volta, por fora, e depois que retiramos o osso ficou mais fácil de lentamente ir puxando o metal, sem resistência nenhuma tirar o metal, fazer hemostasia, ou seja, não podia ter foco nenhum de sangramento, e depois a reconstrução do envoltório do cérebro, da meninge e a recolocação do osso no lugar.
Como explicar o contraditório quando a ciência se baseia na lógica?
IVAN SANTANA -- NEUROCIRURGIÃO DO HOSPITAL MIGUEL COUTO
Ele hoje vem sendo exaustivamente estudado por conta de ele ser um caso absolutamente atípico, não ter sequela nenhuma. Tem gente que atribui a um componente religioso, mas não dá para a gente ficar só contando com isso, mas que ele é um iluminado, eu acho que ele é.
Sorte, espiritualismo ou puro acaso? Superstição ou religião será sempre escolha pessoal, mas a luz da ciência vai procurar sempre com clareza a resolução dos fatos.

