Desigualdades sociais: o drama americano do século XXI

2017-01-20 20:35:28丨portuguese.xinhuanet.com

Por Luís Filipe Pestana

A administração Barack Obama encontra-se nas suas últimas semanas. Quando ele tomou posse em 2009, os americanos depositaram esperança de que o primeiro presidente negro da sua história fosse capaz de mitigar a maioria dos contrastes sociais. De certa forma, o presidente foi capaz de alcançar algumas vitórias. No entanto, no que diz respeito às desigualdades sociais muito ficou por cumprir, mesmo reconhecendo alguns progressos.

O Obamacare (The Patient Protection and Affordable Care Act), mesmo tendo sido criticado e altamente contestado por vários quadrantes da sociedade americana, é a política que mais se aproxima de um sistema nacional de saúde que os Estados Unidos já tiveram. Até 2015, 17 milhões de cidadãos eram cobertos pelo Obamacare, graças aos seus subsídios e custos reduzidos.

O combate ao desemprego foi outra grande meta da administração Obama. A crise financeira de 2008 afetou profundamente os EUA, onde milhões perderam o trabalho. Em 2008, a taxa de desemprego era 7,8% e caiu sistematicamente nos últimos oito anos, rondando hoje os 4,6%. Ainda que a força dos números seja indiscutível, é preciso ter em consideração que os EUA ainda são altamente divididos economicamente, com diversas perspetivas sobre o assunto. Apesar de nenhuma em particular oferecer uma resposta completa a esse problema, há clivagens entre cada um dos estados americanos, assim como entre os diferentes gêneros, grupos étnicos e gerações. Para começar, é preciso saber em que ponto está a desigualdade social nos EUA.

O índice de Gini continua a ser o indicador mais usado para medir as disparidades entre ricos e pobres. É uma escala em que 0 é igualdade total ou perfeita, e 1, desigualdade total ou perfeita. Tratando-se de uma das características definidoras da economia americana dos últimos 50 anos, desde 1967 assistimos a um crescimento contínuo das disparidades sociais, ainda que a pobreza flutue constantemente. Estas flutuações devem-se a períodos de recessão econômica (em que o número de pobres aumenta) e de crescimento e prosperidade.

No gráfico a seguir é possível observar a linha correspondente ao índice de Gini (cinza) e a do índice de pobreza (amarela): 

Gráfico 1: Aumento da desigualdade e flutuação da taxa de pobreza

Fonte: Mather, Mark, and Beth Jarosz. 2014. The demography of inequality in the United States. Population Reference Bureau: Washington D.C., p.3.

As variações na linha da pobreza refletem muito daquilo que tem sido a economia americana, ou seja, uma série de constantes perturbações financeiras que afetam de forma séria os seus cidadãos. É possível verificar que no período pós-crise 2008, a taxa de pobreza começou a subir, ainda que a administração Obama tenha conseguido criar postos trabalho nos últimos oito anos. Paralelamente, as desigualdades continuam a aumentar de forma estável e progressiva, criando-se um fosso cada vez maior entre ricos e pobres. O que fica demonstrado é que as vagas criadas durante o governo Obama não são necessariamente um sinônimo de abundância e prosperidade para aqueles que se encontram no final do espectro da riqueza.

Em 2013, o índice de Gini americano chegou a .476, face a .397 em 1967. Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) indicam que os EUA são um dos países industrializados mais desiguais, ficando atrás de Portugal, Reino Unido, Espanha, Grécia e Japão. A última recessão apenas agravou essa tendência. Do ponto de vista do impacto dessa crise, todos os estratos sociais foram afetados, uns mais que os outros. Entre 2007 e 2013, as famílias que representam 5% da riqueza nacional perderam 16% dela. As pertencentes à classe média perderam 43%. Até 2013, esses mesmos 5% que se encontram no topo da renda ainda detêm um valor 24 vezes superior aos que se encontram no meio.

Parte da explicação para esse fenômeno encontra-se na compra e venda de ações nos anos 90, um período de grande prosperidade nos EUA. A recessão dos últimos anos expôs as fragilidades americanas, com uma bolha imobiliária levando à destruição da riqueza que a classe média acumulara durante os últimos 20 anos. Isso se deveu ao fato de grande parte da renda dessa mesma classe média estar investida no setor imobiliário.

Contudo, esta não é uma situação igual em todos os condados ou estados. Apenas a Califórnia, Connecticut, Flórida, Geórgia, Illinois, Louisiana, Massachusetts e Nova Iorque têm índices de Gini mais elevados do que a média nacional, mas esses oito estados concentram 36% da população. Os com menores níveis de desigualdade são o Alasca, Havaí, Idaho, New Hampshire, Utah e Wyoming. Desde 1979, em todos os 50 estados e no Distrito de Colúmbia aumentaram as clivagens da renda dos cidadãos americanos. Nos últimos anos, elas se verificaram com especial incidência na Dakota do Norte e em Montana, devido ao boom da indústria petrolífera que criou uma grande desigualdade entre quem trabalha nesse setor e os demais.

Muitas das disparidades sociais que encontramos em muitos dos estados têm por base diferentes fatores, mas vale a pena olhar para três aspectos em particular, que espelham uma realidade cada vez complexa e que prometem trazer enormes problemas à futura administração Trump.

O primeiro desses aspetos, e talvez o mais notório, é relacionado às questões raciais. É inegável que os EUA vivem um período de grande tensão racial: as mortes de jovens negros pela polícia, os protestos violentos em Ferguson (Missouri) e outras cidades e o movimento Black Lives Matter chamaram a atenção para a discriminação que ainda hoje existe contra a minoria negra. Também os hispânicos encontram-se com graves problemas de renda e pobreza. Apesar disso, as carências entre as populações negra, hispânica e asiática diminuiram entre 1987 e 2013. Quanto aos brancos, assistimos a um crescimento ténue no mesmo período. O gráfico 2 mostra essa realidade.

Gráfico 2: Taxa de pobreza dos vários grupos étnicos (1987-2013)

Fonte: Mather, Mark, and Beth Jarosz. 2014. The demography of inequality in the United States. Population Reference Bureau: Washington D.C., p. 9.

No entanto, as famílias brancas continuam ter renda mais alta que as demais. Em 2011, ganhavam cerca de US$ 110 mil anuais, contra US$ 6,3 mil e US$ 7,7 mil dos lares negros e hispânicos, respetivamente (USI).

A questão racial é das mais preocupantes atualmente, e muitos afro-americanos sentem que a administração Obama pouco fez para encurtar as distâncias em relação ao restante da população. Algumas das críticas são um pouco injustas: de 2009 para 2016, a taxa de desemprego caiu de 12,7% para 8,1%, passando de 35,3% para 26,1% entre os jovens de 16 a 19 anos. No entanto, nenhum desses indicadores levou a uma redução significativa daqueles que vivem abaixo da linha da pobreza (de 25,8% em 2009 para 24,1% em 2015) e o número dos que possuem casa caiu quase 5%, para 41,7% em 2016.

Além das questões raciais, o gênero também é fundamental para entender as discrepâncias na sociedade americana. Desde 1991 há mais mulheres formadas do que homens e 38% delas ganham mais do que o cônjuge ou parceiro. Contudo, 31% das solteiras são consideradas pobres e 54% das mães solteiras encontram-se numa situação semelhante. As que desempenham as mesmas funções que os homens na área da gestão e finanças recebem apenas 74% daquilo que um indivíduo do sexo masculino ganharia. Várias políticas podem ser adotadas para que essas diferenças sejam mitigadas, como as que permitem uma melhor gestão família-trabalho por parte dos pais. Uma das soluções poderá passar pela aplicação de um modelo que englobe uma licença paternidade que permita às mães dedicar mais tempo ao trabalho e repartir mais o cuidado dos filhos com o cônjuge. Esse sistema existe, por exemplo, na Islândia desde o ano 2000, ainda que tenha perdido eficácia nos últimos anos.

O último aspeto que é preciso analisar é o geracional. Em 2014, a taxa de desemprego dos jovens entre 16 e 24 anos encontrava-se em 14% contra 4% na faixa etária dos 55 aos 64 anos. Ademais, a população mais velha começa a colher os frutos da expansão dos benefícios da segurança social, e desde meados dos anos 90 muitos americanos se aposentam mais tarde como forma de combater os problemas relacionados com a crise. É preciso referir que a instabilidade laboral e o aumento dos empregos precários tornam cada vez mais difícil para qualquer americano ficar no mesmo cargo ou empresa a vida toda. Isso foi possível nas gerações mais velhas, em particular, entre os baby boomers, mas o mercado de trabalho atual é muito menos rígido, o que faz com que os mais jovens estejam em constante busca por uma nova atividade laboral.

Com esta análise é fácil perceber como as famílias mais ricas dos EUA (10%) detêm 52% da renda anual do país, dando força aos valores do índice de Gini apresentados no início deste artigo. No fundo, a herança deixada por Barack Obama é mais pesada do que muitos analistas previam, mesmo considerando os seus esforços para alcançar uma sociedade mais igualitária. Muitas das pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza foram as mesmas que cederam à retórica populista de Donald Trump, as mesmas que votaram em Obama nas duas eleições. Do ponto de vista interno, é preocupante verificar que Trump, alguém que aparenta ter pouca preocupação por aqueles que mais necessitam, seja o futuro presidente americano. As desigualdades que hoje existem poderão ser exacerbadas com a nova administração, algo que apenas levará a mais tensão, violência e caos num país que necessita de alguém que o unifique, e não que o divida.

Referências:

Fox Maggie. 2015. “Nearly 17 Million Americans Covered Under Obamacare”. NBC. Nova Iorque. Publicado a 6 de Maio de 2015. Disponível em: http://www.nbcnews.com/storyline/obamacare-deadline/4-p-embargo-nearly-17-million-americans-covered-under-obamacare-n354851 [acedido a 1 de Janeiro de 2017];

Gottlieb, Scott. 2016. “How Many People Has Obamacare Really Insured?”. Forbes. Nova Iorque. Disponível em: http://www.forbes.com/sites/scottgottlieb/2015/05/14/how-many-people-has-obamacare-really-insured/#75c6bf65777f [acedido a 2 de Janeiro de 2017];

Luhby, Tami. 2016. “Are blacks worse off under Obama, like Trump says?”. CNN. Nova Iorque. Publicado a 15 de Março de 2016. Disponível em: http://money.cnn.com/2016/03/15/news/economy/blacks-trump-obama/index.html [acedido a 2 de Janeiro de 2017];

Mather, Mark, & Beth Jarosz. 2014. The demography of inequality in the United States. Population Reference Bureau: Washington D.C.;

Murdock, Deroy. 2016b. “Obama Insults Blacks - Again”. National Review. Nova Iorque. Publicado a 22 de Setembro de 2016. Disponível em: http://www.nationalreview.com/article/440326/black-voters-barack-obamas-failure [acedido a 3 de Janeiro de 2017];

Priester, Marc & Aaron Medelson. 2016. Income Inequality. Inequality.org (Institute for Policy Studies): Washington D.C. Disponível em: http://inequality.org/income-inequality/ [acedido a 1 de Janeiro de 2017];

Sigurðardóttir, Guðrún Helga. 2014. “Iceland: fewer take paternity leave”. Nordic Labour Journal. Oslo. Publicado a 8 de Dezembro de 2014. Disponível em: http://www.nordiclabourjournal.org/nyheter/news-2014/article.2014-11-27.4319266250 [acedido a 3 de Janeiro de 2017];

U.S. Bureau of Labor Statistics. 2016. Labor Force Statistics from the Current Population Survey. U.S. Bureau of Labor Statistics: Washington D.C. Disponível em: https://www.bls.gov/timeseries/LNS14000000 [acedido a 2 de Janeiro de 2017].

010020071380000000000000011100001359998511